segunda-feira, 23 de novembro de 2009

PROTÓTIPO


Quando o andar do tempo tingir-te os cabelos ao natural,
e sentires o enrijecer dos músculos lentamente,
não busques tintas primitivas, ou moldá-los,
querendo competir com os que vêm...

É bom ficares com os que estão.
É bom navegares nas águas tuas.

Assim é a vida...
não há mudanças.
Inútil cultuares uma vida que não te cultua!...

Voa nas asas de penas longas.
Ocupa o céu de norte a sul.
Muitos daqueles que ensaiam vôos,
observarão o teu ligeiro,
cultivarão as suas asas
e partirão também...!

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

RECEITA

Chegaste com tanta sede,

que aquele copo transbordante foi muito pouco...

Bebeste de uma só vez,

tomada de um amor adolescente,

achando que a felicidade se resumia

num simples sorver enebriante.


Eu te falei: sejas cautelosa!

Beba de vagar,

a rapidez não mata sede

e a água pode terminar.


Não ouviste meus conselhos.

Em tua frente resta um corpo vazio,

que não se enche, nem se recupera.


Eu queria ser bebido lentamente

para poder lhe dar os meus prazeres,

entregues à conta gotas.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

CAMINHONEIROS

“Trabalhe duro. Existem milhões de pessoas vivendo do fome-zero e estão dependendo de você.”
Os caminhoneiros são geniais nas frases colocadas nos para-choques dos seus caminhões. Esta que está aí é mais uma delas. Exploram a sátira e vão levando a vida entre a estrada, o ronco do caminhão, as quebras e atoladas, as bebedeiras, os churrascos, as noites rebitadas, as saudades do lar distante e as conversas soltas nos postos de gasolina.
Parecem pessoas irresponsáveis, mas não são. Chamam para si as responsabilidades. Transportam infinidades de produtos se expondo nessas estradas e ainda acham tempo para, ironicamente, darem a receita: “Trabalhe duro.”
Percorrendo os intermináveis quilômetros de estradas que não terminam, a vida para eles não tem moleza. Atentos aos assaltos, aos buracos e curvas, aos cochilos que teimam em levar seus caminhões para os acidentes.
De forma sarcástica, atrevem-se a dizer que milhões de pessoas dependem deles. E, na realidade, dependem mesmo. Mas é uma dependência crítica e consciente, voltada para o trabalho do governo de quem parecem distantes, mas sabem tudo. Os rádios, companheiros inseparáveis das madrugadas e das distâncias, nas suas ondas médias, curtas e moduladas lhes contam tudo. Sabem das barbaridades do senado, da câmara dos deputados, das viagens do presidente, e, especialmente, do fome zero.
E, para terminar, têm a coragem de reservarem para si, parte da responsabilidade de alimentar o fome zero, sem menosprezarem a ironia.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

AMANTE

Amante não, amigo,
Poderá até ser...
Para ser amante
basta uma atração rápida,
Para se tornar amigo, demora...
Os olhares que se encontram
E teimam em se fixar
Poderão criar amantes
Num simples piscar de olho
Amigo precisa ser trabalhado
Consumir um saco de sal juntos.
Os amantes se devoram,
Atraem-se pelo cheiro,
Pelo sentir das mãos
Na elasticidade dos lábios
Que se retesam nas línguas
Que se abraçam
Que fazem encontrar os corpos
Sem medir as conseqüências.

domingo, 1 de novembro de 2009

CALDO DE PIRANHA

Quando me preparava para retornar de uma das pescarias no rio Paraná, ganhei um incalculável número de piranhas, todas bem acondicionadas em bastante gelo.
Disse-me o Tião que agüentaria a viagem sem qualquer problema. Explicou-me que aquilo era ingrediente de um excelente prato que chamou “Caldo de Piranha”. Detalhou-me com cuidados os benefícios, e, por fim, disse ser"afrodisíaco". Era sempre esse caldo que salvava os pirangueiros na satisfação completa das suas amadas, afirmou-me.
Observei aquele pacote gelado e fiquei a me perguntar como seria possível arrancar dali tanto "fogo". Pedi-lhe a receita que anotei com cuidado, indiferente às gozações que faziam meus com-panheiros.
Na festa que sempre fazíamos, algum tempo depois de todas as pescarias, que tinha a finalidade de colocar as conversas em dia, relembrar os peixes que haviam escapado e para se iniciar as programações da próxima, divulguei que ofereceria o famoso caldo. Apelidaram-no “o caldo bomba atômica”.
Deixei aquele pacote o dia todo fora do gelo para que descongelasse e de tardinha os peixes tinham descongelado. Tirei as escamas com cuidado, lavei as peças, pedi uma panela de ferro de uns dez litros, enchia de água, coloquei aqueles peixes dentro e deixei fervendo por duas horas, conforme previa a receita do Tião. Ao final, estavam derretidas e um amontoado de espinhos ocupava espaço na panela. Pedi um “mix” e triturei aquilo tudo, sem tirar nada, nem os olhos das piranhas. Ficou um misturado grosso e viscoso, até meio esquisito, que alguns curiosos observavam e faziam comentários:
- Tomar caldo de um bicho que come gente!
- Cabeça de peixe tem que ser jogada fora!
- Comer os olhos, nem pensar!
- Não escaparam nem os dentes!
Continuei o trabalho executando uma peneirada. Era para tirar os mais grossos e fui adicionando água até ficar no ponto. Na seqüência foi só temperos: sal, salsa, cebolinha verde, alho, cebola, alecrim, pimenta do reino, alfavaca e malagueta. Um pouco de ajinomoto para dar o equilíbrio.
Uma última fervura, umas provadas, algumas gramas de sal que faltavam e estava pronto.
O Tião me dissera que poderia ser servido em xícaras como uma espécie de entrada. Devia ser bem quente, e seria melhor consumido caso a temperatura ambiente estivesse baixa.
Fui o primeiro a saborear, como a querer provar aos presentes que não era veneno. A princípio aquele caldo parecia incutir curiosidade nos presentes, principalmente entre as mulheres. Mas foi sendo consumido, consumido e consumido. Em pouco tempo a panela estava vazia.
Queriam a receita, pediam o nome dos temperos utilizados, pois, confessavam que nunca haviam tomado um caldo tão gostoso.
Estão a me perguntar se os efeitos propagados pelo Tião tinham fundamento. Uns disseram que não sentiram nada de anormal; outros andam a dizer que a coisa funcionou. Querem agora uma pescaria no pantanal, porque o rio Paraná quase não tem mais piranha.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

O CASAL CAMINHANTE

Não sei seus nomes. Não sei suas idades. Sei que, impreterivelmente, todas as manhãs, passam rumo ao sul e, meia hora depois, retornam ao encontro do norte.
Sempre o mesmo trajeto. A mesma calçada. A mesma postura alquebrada dos dois. Ele se apoiando a ela, pois se parece mais idoso.
Seguem sempre em silêncio. Indiferentes com os que passam, com os carros da avenida, com os moradores dos prédios que se estendem ao longo do caminho.
Quantos anos terão? Deduzo uns oitenta ele, uns cinco a menos ela. Estão em forma: nem obesos, nem magros.
Pois da janela do local onde trabalho observo-os há dias seguidos. Ela parece mais conservada, ele mais cansado.
Cadenciam os mesmos passos numa sincronia perfeita: braços entre braços.
Não devem morar longe daqui. Quando estão indo suas fisionomias transmitem o desejo de percorrer caminhos, quando retornam estão ofegantes, suor pelas faces. Transportam uma espécie de tristeza sem expectativas. Parecem querer chegar.
Mas no fundo, no fundo, transmitem a sensação de um casal realizado, sem se livrarem da tristeza, da ofegância, da ausência de alternativas, das faces enrugadas e de um passado bem vivido.
São coisas do tempo. Quanto já não terão conversado! Certamente, amado muito! Não é para qualquer um chegar aos oitenta, numa paz de espírito assim!
Não sei seus nomes, nem buscarei saber. São os meus simpáticos velhinhos que todas as manhãs passam cumprindo essa rotina diária.
De uma coisa tenho certeza: quero que continuem passando ali, durante ainda muitos anos, mas sei que as previsões não são longas.
O cabelo feito rabo de cavalo já todo branco dele, se identifica com o dela, que por não receber tintas, também não suportou o trabalho dos anos.
Tenho a impressão que aboliram as conversas. Comunicam-se mentalmente e por olhares, alguns afagos de mãos.
Ei-los passando!
Estão retornando para o norte.